segunda-feira, 3 de março de 2008

Memórias



Texto inédito de Fernanda Matos e Silva

Mudáramos para a Av. Da Republica, defronte do Colégio Inglês, em que as minhas duas irmãs e o meu irmão se educaram.
Aí nos conservamos cinco anos, findos os quais, por serem necessários mais dois quartos, pois meu irmão crescera e era já um homenzinho e minha avó materna enviuvara, tendo ido viver connosco, mudamos para a Praça Duque de Saldanha nº 1,( no prédio do anjo), no 1º andar direito.
Foi aí que comecei a frequentar um colégio que havia perto, onde aprendi, desde as primeiras letras até à 3ª classe de hoje, 1º grau desse tempo.
Tinham-se passado dois anos e meio quando deixamos essa casa, indo morar na Av. da Liberdade 122. Mudança de escola e de professores, nova adaptação a outro ambiente e comecei a frequentar a Escola Luso- Franco- Belga, numa rua que terminava num beco sem saída e que é hoje a R. Rodrigues Sampaio a Stª Marta.
Uma série de contratempos, doenças minhas e tinha dez anos sem ter feito exame algum, embora estivesse habilitada para isso. Mas ali naquela casa minha mãe não achava o ambiente próprio aos seus anseios de artista que não podia acostumar-se a viver dentro duma casa vulgar da cidade, nem queria afastar-se contudo dela, habituada desde o berço às comodidades e bulício de Lisboa.
Eis que surge a oportunidade sonhada e que viria reunir os seus desejos: a paz e o sossego da aldeia, a dois passos da Baixa.
Uma professora indicou a meus pais uma quinta que estava em venda, ficando ainda dentro da periferia da cidade pois era perto do Areeiro e tinha a caracteriza-la reunir em si todas as atracções do campo juntamente com a comodidade de uma casa citadina a que não faltava gás, salamandras para aquecimento no Inverno, uma vista maravilhosa sobre parte da cidade e o esmero com que fora delineada e estava tratada.
O entusiasmo foi tal, após a primeira visita que a minha mãe não descansou mais até que o meu pai satisfazendo-lhe a vontade, que era igualmente a dele pois fora o seu sonho dourado, a comprou.
Nova mudança, mas desta vez só ao fim de 31 anos e com fundo desgosto deixei essa casa, essa querida casa que foi o paraíso da minha adolescência, fonte inesgotável de alegrias sãs, boa saúde física e mental que desde o primeiro dia nela desfrutei.
Para uma criança criada na cidade, embora saindo todas as férias para o campo ou para a praia, aquela quinta foi a felicidade. Tinha a parte rústica representada pelas hortas vicejantes e sempre fartas, o pomar sendo além disso semeada de árvores de fruto por todos os recantos e de todas as variedades, com campos de semeadura, searas (coisa que até aí nunca vira de perto)
Capoeiras bem providas, cortiços com abelhas, um estábulo com 10 vacas, vinha e latadas encimando as ruas e jardins, nem menos de cinco grandes jardins a abarrotar com flores, adornadas com muros de buxo, de tanques a emprestar frescura e graça a todos eles.
Qualidades de árvores de sombra raras: um cacto gigante circular, uma árvore-da-borracha, tamareiras com verdadeiras tâmaras, eucaliptos, pinheiros bravos e mansos, acácias de floração branca, roxa e rosa, olaias e tramangueiras empenachadas de lilás e rosa, oliveiras, que sei eu, de tudo bastante e bem distribuído de forma a encher de sombra aprazível as ruas e bancos de azulejos antigos, porque bem antiga era essa quinta que no portão principal deitando para um pequeno largo na azinhaga do Areeiro, esquina da Calçada da Ladeira, tinha lindo painel de azulejos figurando dois pavões de caudas em leque abertas e policromas e a data de 1726.
Aí vivi e cresci, aí senti pela primeira vez com o contacto diário com a natureza, o encantamento que ela empresta ao campo, no decorrer das estações do ano e as transformações constantes porque assistia deslumbrada, fizeram-me conceber o desejo de descrever o que via, tentando reproduzir em letras e frases o meu sentir.
Começaram os primeiros versos ( maus versos de péssima poetisa) e as primeiras ensaios literários.
Quanto a estudos ….
Há 32 anos Lisboa não era como é hoje. No Largo do Chile terminava a Avenida Almirante Reis e depois rumo ao Areeiro e à Quinta do Alperce, que este era o nome pitoresco da Quinta e que, juntamente com os terrenos e outra Quinta dos Alperces que ainda existe ou existiu no Caminho de Baixo da Penha, pertenceram a Pina Manique, só havia azinhagas entre muros e de leito pedregoso ou terra batida e a Rua do Areeiro, pouco mais larga e também toscamente empedrada, por onde passava o eléctrico.
Daí por diante e à volta da nossa, quintas de semeadura, mais quintas rústicas ( a do Padre – a do Manuel dos Passarinhos, etc.)
Como poderia seguir regularmente os estudos, frequentar um liceu (havia tão poucos para meninas e tão longe!) ter uma educação oficial? Os professores iam dar-me lições a peso de ouro indo o carro do meu pai busca-los e pô-los novamente em casa ou aonde mais lhes convinha.
Assim aprendi português com o professor José Portugal, autor do Método Prático de Português e um bom, proficiente e simpático professor que ainda hoje lembro com comovida saudade e grande veneração.
Como eu manifestasse desgosto por não tirar o curso do liceu e depois o curso superior de letras, ainda comecei a estudar (em casa) o 1º ano dos liceus, mas o estudo assim sozinha, sem o estimulo da competição nem a companhia de outras pequenas da minha idade, depressa me desanimou e aborreceu desistindo. Aprendi o português, francês, inglês, lavores, arte aplicada ( coisa hoje tão fora de moda e então em plena voga) piano e canto e só muito mais tarde desenho e pintura com D.Raquel Roque Gameiro de quem fui discípula.
Desde criança senti sempre atracção pelo estudo, avidez em saber e aprender, pelo prazer de aprender e saber, pois estudei sempre só e em casa.
Hoje ainda, gosto sempre de aprender coisas novas e aperfeiçoar o que aprendi.
É preciso dizer que devo a minha formação intelectual não só ao estudo e aos bons professores que tive, mas também ao ambiente culto e artístico em que nasci e me criei também, pois meus irmãos e eu beneficiamos com o contacto constante com meus pais, sobretudo a minha mãe, senhora de rara cultura e profundamente artista. Discípula dilecta de Gonçalves Viana e Ferreira-Deusdado, ensinou-nos a amar a nossa língua e a cultiva-la. Aluna de Luciano Freire, interessou-nos desde pequeninos pelas artes plásticas, levando-nos a museus e exposições, a monumentos e igrejas, para que conhecêssemos a pintura, a escultura e arquitectura, não só dos livros, mas de ver; aluna ainda de Vieira e condiscípula de Viana da Mota, no Conservatório, onde tirou o curso superior de piano com louvor e distinções em todos os anos; não só fez-nos ouvir boa música desde o berço, familiarizando-nos com os grandes génios musicais em inesquecíveis serões de arte, recordados ainda hoje por nós com saudade infinita; como nos levava a concertos a S. Carlos educando-nos o gosto e o ouvido.
Comecei a escrever pequenos contos infantis aos doze anos, para distrair 6 sobrinhos belicosos, muitas vezes entregues à minha guarda e que gostavam muito de ouvir historias.
Depois de esgotado o repertório dos que sabia e eram muitos: Grimm, Andersen, Ana de Castro Osório, até as Mil e Uma Noites, em rica edição profusamente ilustrada, eu tive que inventar histórias para os distrair. E como essas histórias tinham sucesso no meu público infantil, acrescido nesse tempo de mais dois ou três amiguinhos e ouvintes, passei a escreve-las e a guardá-las.
Ia escrevendo contos, descrições, narrativas históricas e de simples engenho meu e juntamente com as redacções exigidas pelo meu professor de português. Por indiscrição de uma das crianças o meu professor soube dos meus contos e quis lê-los e admirada, escutei pela primeira vez aplausos e incitamentos de uma pessoa crescida, o que me encheu de zelo e boa vontade de prosseguir. Já nesse tempo eu decidira ser escritora e planeava sonhos para o porvir.
Passaram-se contudo bastantes anos antes de publicar qualquer trabalho meu. Só muito mais tarde, em 1928 me decidi a escrever para o Século.
Li muito, leio sempre, com o mesmo interesse, o mesmo desejo de aprender, de saber; obras de todos os géneros e isso melhorou e poliu bastante o meu estilo corrigindo defeitos, tornando-o mais claro e mais simples.
De começo procurava as palavras bombásticas, empoladas, que deslumbravam e pareciam as mais belas e empregava os adjectivos com profusão, parecendo- me mais fácil assim, descrever o que via, ou o sentir psicológico dos meus personagens.
Depois, mercê do estudo e de bons conselhos, fui melhorando de forma procurando dar as frases maior simplicidade e mais justeza e hoje, sempre insatisfeita, continuo tentando atingir mais perfeição.

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