quarta-feira, 2 de abril de 2008

Intemporal


O 25 de Abril de 1974 proporcionara-me inesperadas experiências, de que as políticas, sendo as mais manifestas para quem vivera trinta e dois anos em ditadura, foram as as mais indeléveis. Mas também na abertura de novos horizontes na cultura, na forma de estar, na forma de ver a vida e a sociedade - que curtas estadas na Europa já tinham antecipado. Dessa experiência pessoal surgiu o terceiro livro de poemas que sendo datados, eram simultaneamente intemporais. Foi em 1976, em edição de autor, com capa de Luís Silva Moreira. Mereceu do poeta e crítico literário da revista "A Vida Mundial", Dórdio Guimarães, dirigida pela saudosa e grande poetisa Natália Correia, estas palavras: " Uma doce desilusão é este livro de versos de João Mattos e Silva. Desilusão que apetece dizer 'intemporal', exactamente o título do volume. Há uma delicadeza interrogativa na sua poesia que me toca particularmente. Uma subtil fragrância que chega ao nervo, acaricia o músculo e segreda que tudo vai ser pó e cinza depois do certo e incerto beijo. Têm dedos as palavras poéticas de João Mattos e Silva. Dedos que digitam a nossa memória e nos dizem sossegada e solenemente "nunca mais". Esse nunca mais de veludo que têm as coisas desiludidas que já se viveram... Intemporal é um livro saborável, dolente como uma fumaça de cachimbo, pairante... tem a impressão da sensibilidade imorredoira que torna o poeta 'uma coisa' verdadeiramente intemporal"


Pórtico

Ser livre
é não reter nas mãos
o vento
é ser verdade e sal
e ser fermento.


3

Pacíficos paramos a distância
que vai da paz á guerra.

...Somos a toga e arca da aliança
mas usamos adaga
e silenciamos
a lei que encerra.

Pacíficos apressamos nossos passos
e ungimos nossos corpos para a guerra.


As Palavras

I

Construir a palavra
letra a letra;
o poema verso a verso
feito.
Delimitar a sombra
do teu corpo;
medir a beijos o teu peito.

Circundar o teu rosto
riso a riso;
descrever passo a passo
o teu caminho.
O verbo de prolixo
ser conciso;
vermelho não ser vinho.

Alargar o limite
a traços tracejado;
destruir o segredo
sangue a sangue guardado.


Ser feliz sonho a sonho
acrescentado.



Sombras

1

É muito cedo ainda
para ter haver
no fogo que não arde.

É muito cedo ainda
(sendo tarde)
no tempo em que não estou.

Pilatos lavo-me as mãos
do inocente que não sou.